segunda-feira, 23 de abril de 2012

Era uma vez o que nunca tornará a ser.

  Hoje eu gostaria de me permitir fazer uma apropriação, gostaria de contar a história de alguém. É sempre bom começar pela origem e o marco zero sempre é a família.

   A mãe tinha sofrido desde a infância com parentes que pouco a amaram. Foi obrigada a casar nova para não pesar nas despesas. Um erro quase fatal. O casamento que surgiu como um rémedio ruim não pareceu ao longo dos primeiros anos um negócio tão arriscado. Talvez tivesse futuro caso não fosse umas conexões cerebrais falhas, esquizofrenia.

  O primeiro filho veio, a primeira crise esquizofrênica veio, a primeira agressão também. Boom! O castelo era de cartas, o príncipe seu algoz. Nada poderia salvar aquela mulher, mas ela teria que viver as torturas para poder rir de suas vitórias e viveu. Permaneceu em pé, deu a luz mais quatro vezes. Na última ninhada veio os gêmios, uma benção em muitas fámilias. Nessa eles eram mais duas bocas para comer a farinha quando tinha, as folhas de batata doce quando achavam. Mais duas vidas para somar na miséria. Porque sofrimento dificilmente se divide entre quem não pode fazer nada.

  Não, essa não é mais uma história triste inventada para causar comoção, por isso, não vou entrar em detallhes. Eu me apropriei de fatos que não me pertencem, isso é bem verdade, entretanto, ainda devo respeito aos autores da história que se segue. Enfim, as cinco crianças fugiram do algoz. Passaram fome, frio, sentiram medo, mas por misericórdia do acaso sobreviveram todos. Cada um foi crescendo individualmente ao redor da árvore mãe. Ninguém a deixou sucumbir, assim todos eles foram se reerguendo aos poucos e com muito estudo (porque comer não era uma opção, tal como deixar os estudos também não era). Claro, mãos auxiliadoras apareceram para regar e dar força a árvore mãe, pois os mais novos vieram com sete anos de diferença e precisavam vingar para que eu pudesse contar a história de um deles. Sim, é  por um deles que estou aqui. O último de todos me motivou, a menina.

  Ela nasceu no dia 30 de Agosto de 1992, saudável como tem que ser. Seu irmão nasceu miúdo, veio primeiro e não teve a mesma sorte. Nada aparente. Ele veio ao mundo com um problema intestinal grave que quase  tirou sua curta vida. Sete cirurgias ao longo de sete anos para nunca mais perigar deixar aqueles que o amam, a semente sempre foi forte.

  Mas a garota é quem me interessa, não que ela seja melhor do que os outros, é que só me permiti tomar pra si seus fatos.Quando ela nasceu com a carinha bem pequena e redonda sempre sorrindo todos sabiam que ela seria amorosa. Seu desenvolvimento foi normal, uma menina com pinta de moleque. Já que subir em árvores, muros, pular janelas e soltar pipa só podia ser coisa de menino. Ela era um ''menine'', a mistura dos dois. Sua mãe era dura na queda e lhe trouxe algumas dificuldade, não porque era má, mas porque nunca entendeu aquele jeito.

  A ''menine'' sempre teve um ar independente e na maioria das vezes mandona, porém, sempre extremamente carinhosa. Seu jeito durão, pura faixada. Uma coisa ela tinha clara na mente, se ninguém vê, não existe. Ela não chorava por seus sentimentos, não sentia saudades, não dizia a verdade. Como ela mentia! Pensando bem, como ela inventava. Tudo compreesível. Se as coisas eram chatas e intediantes do jeito que ocorriam porque não reeventar, temperar, apimentar? Nunca foi percebida como a inventora que sempre foi.

  A inteligência ou esperteza lhe trouxeram problemas, entretanto, nada a machucava mais do que sua habilidade para perceber as coisas. Sua sensibilidade a matava. Eu sei que enquanto ela crescia tinha que culpar todos que faziam parte de sua vida. Ora, ela sente-se infeliz, não se entende com ninguém, não se entende consigo mesma, só podia ser difícil aturar-se,logo, culpar alguém era mais 'fácil'. Toda a sua sensibilidade perceptiva a tornava muito diferente porque fazia dela um ser capaz de se conectar com o interior de tudo, mas nunca, nunca deixou que ela se apegasse realmente a nada. Tudo era um estudo, uma ciência a ser aprendida. Sua mente a tinha dominado de vez.

  Falando assim até parece que a garota era um ser de outro mundo, na verdade até era, mas do seu próprio. Bem, diferente do que pode parecer ela não tinha nada de especial e se todos estivessem onde ela esteve diriam que a pequena aprendeu a ser assim. Um homem que ela até hoje ela não sabe se o ama ou amou a insinou em boa parte.

  Ele não era mau, mas estragou tudo. Eu via a felicidade dela ao estar com ele, aquilo era um milagre. Ele a entendia, a ensinava sem castigá-la, era bom, tão bom que a 'menine' se apegou. Seu escudo foi quebrado, sua defesa rompida. Ninguém imaginaria que 'menine' fosse precisar se defender daquilo que finalmente era só seu, o amor dele. Eu poderia dizer que foi tudo tão rápido que quando ela viu não podia mais evitar, mas seria mentira. Era difícil não saber no que a obcessão dele resultaria. Abraços mais fores, mãos incontroláveis, respiração ofegante, quase beijos quase roubados. Tudo isso era muito para a 'menine' agora quase mulher segurar sozinha. Ela fugiu. Correu forte, caiu, quase morreu, morreu e decidiu que amar demais daria em morte.

  A decisão difícil (não conclusão) caiu sobre todos que a cercavam, ou melhor, quase todos. A decisão pesou sobre a família, sobre a raiz, a semente. Ninguém foi capaz de lhe dar proteção, coisa que para ela deveria ter acontecido. Por muito tempo culpou sua origem, se afastou deles. Não queria se apegar nunca mais, foi tornar-se sozinha.

  O fim trágico poderia ser presumido caso não fosse os amigos que a encontraram. Eles tiveram trabalho porque ela sentia frio, fome, solidão, tristeza, tudo em intesidade 100. A necessidade de se apegar a qualquer coisa viva que não fosse sua família era pálpavel. Sua fraqueza emocional permitiu que fosse ferida por seus amigos, por seus falsos amigos e por si mesma. Aceitável. O problema era entrar na vida de alguém assim e não sair com vida. Muitas marcas foram feitas antes que a 'menine' tentasse se levantar. Entre elas uma que eu nunca vou esquecer ,já que estive lá e assisti. Foi a que a mão direta infligiu sobre o pulso esquerdo. Sumiu. Não tem cicatriz, mas eu ainda a vejo lá. Todos os fantasmas que ela não vê mais eu os tenho trancado e me ponho de guarda, eu estarei lá. Aprendi e aceitei que ela também tem a mim.

  Hoje, depois de compreender que as pessoas se vão porque a vida é grande e não somente por abandono. Depois de compreender a relevância de se apegar, de ser de algum lugar. Depois de aceitar que tristezas acontecem e sempre aconteceram e acontecerão. Depois de entender que após amar e ser desamada, só resta desamar e amar novamente. Depois do depois só tem o agora e o agora é viver. Depois disso tudo e mais um pouco, ela aprendeu o que me ensinou. De tudo só o que vale é quem fica e quem fica são todos aqueles que fizeram você ser quem é.

  Hoje 'menine' se recusa a não deixar que se apeguem a ela por suas limitações impostas por si mesma. Hoje ela tenta, hoje ela quer e amanhã ela será tudo o que um dia quis ser.





Rafa, ainda penso em você todos os dias. Obrigada por me ouvir.
 


 


















Um comentário: